Os primeiros rebuçados para adoçar o Mundo
Chegava a casa sempre ao final da tarde e sentava-se na sala a ler o jornal. Eu, com cinco ou seis anos, pulava para as costas do maple e penteava-o: risca ao lado, risca ao meio, trancinhas… tudo o que conseguia fazer no seu cabelo curto. À noite, depois do jantar, na hora do café, saltava-lhe para os joelhos, numa competição com a minha irmã mais nova.
Lembro-me ainda quando ele passeava, aos sábados à noite, ao longo do comprido corredor da casa, o mesmo corredor onde os meus irmãos mais velhos subiam – braço e pé de um lado, braço e pé de outro – quando jogavam à cabra-cega, o que tanto me fascinava. Ele andava com passo lento, as mãos nos bolsos, enquanto esperava a Mãe que se arranjava para irem ao cinema.
Mas de todas as lembranças, a mais forte, talvez, é a de uns senhores, que eu não conhecia, que de vez em quando iam lá a casa à noite. Entravam directamente para a sala de jantar, um após o outro, e ficavam a conversar horas a fio. Nós, os filhos, não podíamos ir para o corredor, nem fazer barulho. Mais tarde, quando ele foi preso, soube que eram reuniões políticas e que todos queriam um mundo melhor.
Encontrei alguns deles na sala de visitas da prisão do Aljube quando o ia ver. Eu andava a passear de colo em colo, pois achavam graça àquela menina pequenina e davam-lhe algumas guloseimas que acabavam de receber das famílias.
Mas o que seria isso de um mundo melhor? Comecei a observar com mais atenção o que se passava à minha volta. Tínhamos saído há pouco tempo da II Guerra Mundial. Portugal, que se dizia neutro, não sofreu muito com o conflito, mas, num esforço de memória, consegui lembrar-me que adoçava o leite com rebuçados, por causa do racionamento do açúcar. Dos horrores da guerra só me viria a aperceber mais tarde, quando comecei a estudar, a ler livros, a ver filmes, a ouvir testemunhos sobre os judeus, campos de concentração, tortura, morte, violações, cidades destruídas.
Então, jurei a mim mesma que também não seria apenas espectadora.