Militante da amizade
Militante da Amizade Aprendi a amar e defender a Liberdade ainda era um quase catraio, com as fraldas abandonadas havia uns tempos não tão longos como isso tudo. E com ela, aprendi também a amar e defender a Democracia. E a República e o Socialismo Democrático – e continuo a aprender. Todos os dias. Se isso não acontecer, quer dizer que não se vive, vegeta-se sem nada para amar e defender. Excepto a Pátria e a Família, bem entendido.
Pelos idos de 67/68, comecei a mandar umas coisas (com pseudónimo por mor das… coisas), para os primeiros números do Portugal Socialista. Era o tempo da ditadura, o tempo salazarento, o tempo da censura, da polícia política, do medo e da opressão. Mas também do destemor, da coragem, da dignidade e da verticalidade. Enviava esses textos entusiásticos e ingénuos, simultaneamente. Em cartas com mata-borrões dentro, de propaganda farmacêutica. Dava-me gozo – deu-me.
O destinatário era um tal Tito de Morais. Não sabia quem era, associava-o ao almirante que, quando jovem segundo-tenente, participara no 5 de Outubro e que se tornara numa figura destacada da República. A morada era em Roma, e as missivas iam dirigidas a um italiano de seu nome Arigo.
Estava em Angola, como oficial miliciano e continuava sob vigilância da PIDE, (com a qual já tivera em Lisboa uns quantos encontros/desencontros e umas amolgadelas), quando comecei a remeter esses pequenos textos, – a que o destinatário, uns quantos anos mais tarde, chamaria textículos, com x, como acentuava com um sorriso por baixo do bigode e que continuo a usar... Mesmo assim, persisti em mandá-los para Roma.
Eis senão quando – dá-se o 25 de Abril. Eu ficara em Angola, tinha três filhos para criar e a escolha não se revelou de todo desacertada. Com a chegada do meu ex-professor de Direito Administrativo, Marcelo José das Neves Alves Caetano, ao poder, depois da bendita cadeira ter desempenhado cabalmente o papel que lhe fora distribuído, a PIDE rebaptizada DGS, não me incomodava muito. Uns avisos, apenas, que me iam chegando, por mor de alguns Amigos pretos (não gosto do termo negros, que considero insultuoso e o Tito também não) que eu não devia ter – mas tinha.
No dia 2 de Maio, depois de muitas lágrimas de alegria vertidas em Luanda, ao pé do aparelho de rádio, vim a Lisboa. Tinha de ser. Os malandros do MFA, tinham feito o já citado 25 de Abril nas minhas costas, sem esperarem por mim… E, apenas deixei a mala de viagem em casa de uma tia, meti-me num táxi para os Restauradores, apanhei o elevador da Glória, cheguei lá acima – e fui-me inscrever no Partido Socialista.
Dei de caras, logo, com um Amigo de sempre, o Mário Sottomayor Cardia e foi o Catanho de Menezes que recebeu a minha proposta. Ele e o Cardia apadrinharam-me. E foi então que conheci o Senhor Engenheiro Manuel Tito de Morais. Que, afinal, era filho do Senhor Almirante. Estivemos à conversa, pois se lembrou logo das minhas missivas «secretas». Era o princípio imediato de um tu que me desvaneceu e duma Amizade que duraria até à hora da sua morte. Não senhor; até hoje.
Meses depois, em Setembro, voltei a Lisboa, já com a família. E comecei à procura de emprego. Corri jornais, onde uns quantos «democratas» franziam os respectivos cenhos, porque eu era um colonialista regressado de Angola. E numa tarde, ali ao Príncipe Real, quase desmoralizado por tantas negas, o Cardia disse-me que me queria no Portugal Socialista, finalmente sem peias.
Não sei por que bulas, mas, dias passados, o Zé Leitão, o Jorge Morais, o Avelino Rodrigues, a Teresa Sena e mais dois ou três elegeram-me para chefe da redacção. O Cardia, director, aceitou. Eu, também. Estávamos instalados (mal) nas dependências da antiga Censura no Bairro Alto… Saudosismos? Saudades. De uns bons tempos, em que nos tratávamos por tu e éramos camaradas. Hoje…
Foi no Largo do Rato que combatemos o mesmo combate nas colunas do seu e meu Portugal Socialista, o Órgão Central do PS. O Manel Tito como director, eu continuando como chefe da Redacção. Esses anos em que trabalhámos juntos, podia dizer que cimentaram a Amizade que nos unia. É uma redonda mentira. Ela já não precisava de mais argamassa. Os alicerces não cediam; nunca mais cederiam.
Esta é uma história corriqueira, na primeira pessoa (coisa que não deve ser feita, mas que está… feita) de um plural que não tinha fronteiras na fraternidade e na solidariedade que nos unia. Só mais uma alínea. O meu irmão mais novo, nunca saberei porquê, aos 33 anos deu um tiro na cabeça. Os escudos eram escassos, poucos mesmo. Foi o Manuel Tito de Morais que decidiu que a Maria Emília me desse a quantia para pagar o funeral. Sem que eu soubesse que a ideia e a decisão eram dele. Mas soube. E disso também nunca me esquecerei.
Resta acrescentar que, quando comecei a pagar o que considerava um empréstimo, o Tito, que ficara muito aborrecido por saber que eu… sabia o que ele fizera, disse-me tranquilamente – como era sempre e sempre procedia – que fosse depositando o dinheiro, porque os meus miúdos «talvez um dia destes precisem mais da massa do que eu». Era esse o Tito de Morais que tive como Amigo e me ensinou que defender os nossos ideais é das melhores coisas que podemos e devemos fazer.
Antunes Ferreira
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