Manuel Tito de Morais, o socialista
Evocar Tito nestes cem anos em que se comemoram sua vida e seu exemplo, se bem que uma obrigação, é, para mim, muito doloroso, porque sinto demais a falta de João (1), que estaria na linha de frente, com suas irmãs (2) e irmãos (3) a organizar estas tão justas homenagens ao pai, o ilustre cidadão, o homem de honra, o Socialista.
E digo, o Socialista e não apenas um grande socialista, porque, para mim, Manuel Tito de Morais foi o paradigma da vivência socialista, a imagem rigorosa do homem de Partido, o político sério, íntegro, inabalável na convicção de que o seu PS seria o garante -como foi – da democracia em Portugal.
Comecei a saber de Tito, ainda no exílio, no Rio de Janeiro, onde conheci João nos finais dos anos sessenta. Quando ambos, pai e filho, anos atrás haviam passado algum tempo em São Paulo, não tinha havido qualquer contacto, visto eu estar integrado no grupo da Oposição portuguesa do Rio e as articulações com São Paulo serem esporádicas.
Curiosamente, já depois do 25 de Abril, Maria Emília recordou uma carta minha dirigida a Tito, na Argélia, da qual não lembro, por certo com um motivo específico, não representando, contudo, qualquer linha de coordenação política, que aliás raramente aconteceu entre os grupos de Oposição no estrangeiro, na luta contra a Ditadura.
Foi com João que, alguns dias depois do 1ª de Maio florido de cravos, nos fuzis dos soldados e nas lapelas dos polícias, subi as escadas de São Pedro de Alcântara para ser apresentado a Tito, que encontrei na sua primeira sala de trabalho, modesta como todas as que ocupou no Partido Socialista. Logo na primeira conversa, ele distante, para avaliar se eu teria as qualidades necessárias, percebi na sua convocatória à luta "Não podemos perder tempo, o trabalho vai ser imenso!" o homem determinado que iria ser um pilar na construção do Partido, incansável e intransigente na defesa da liberdade e da justiça social.
João foi assim, desde esse dia, o elo permanente dum convívio com Tito, tão importante para a minha formação como militante activo do PS nos anos 70 e 80. Pai e filho constituíram um binário de enorme eficácia. Parece que estou sentado com eles na noite em que traçaram o roteiro para a conquista de Viana do Castelo para as hostes socialistas, acertando estratégias e a escolha dos camaradas que em cada lugar do Minho seriam os primeiros companheiros da empreitada, que trouxe grandes vitórias ao PS em toda aquela região, em sucessivas eleições pós 25 de Abril.
João varou o Minho com seu Citroen 2 cavalos, preparando as reuniões donde iam brotando as Secções do PS, após as intervenções galvanizadoras, as do camarada Tito, com voz firme e pausada, que doutrinava os assistentes, ávidos de democracia, e as do próprio João, em tom mais elevado, conclamando ao trabalho.
Falar de Tito no PS é também falar de Mário Soares. Quero declarar que ninguém lhe foi mais fiel do que Manuel Tito de Morais. Tito foi sempre tão frontal quanto leal na sua relação com o líder, que sempre estimou e a quem dedicou uma enorme confiança, como o timoneiro do Partido Socialista. Mário Soares nunca foi surpreendido por alguma posição divergente de Tito, sem antes ser avisado de que a iria tomar. Os mais velhos recordam bem como Tito foi o único voto público contrário ao Acordo com o CDS. E esse desassombro, essa coragem, só aumentaram o respeito que sempre mereceu.
Mas eu quero reviver Tito sobretudo como eixo fulcral de sua família, a extraordinária lição de como conseguiu reunir á sua volta as duas esposas, Maria da Conceição, a primeira, a mãe de família, Maria Emília, a segunda, a guerreira companheira de luta, as filhas, os filhos, os genros, as noras, os netos, as netas. Sua irmã Maria Palmira, seu irmão Augusto. Que admirável painel humano!
Depois de quase todos separados pelas vicissitudes da luta contra a ditadura, depois de tantos anos de dúvidas sobre se estavam bem, uns em Portugal, outros no exílio, mesmo depois das posições de confronto após o 25 de Abril por orientações políticas diversas, eis que em Lisboa, depois na Malveira da Serra, mais tarde em Terrugem – aqui lembro a festa dos 80 anos de Tito – foi possível ao chefe da clã sorrir do conforto de ter todos ao seu lado.
João, para a família, para nós os amigos também era Tito. Sempre o tratei por Tito, ele que foi um irmão de vida. Que ainda me traz lágrimas de saudade. Foi com ele e sua Lúcia (4), que eu e minha mulher Maria Ivone passámos a conviver de forma constante com a família Tito de Morais. A viver como nossos os bons e maus momentos. Destes, o abalo profundo da perda abrupta do Pereira – assim Tito o tratava – o marido de Titinha, homem bom, estimado por todos E também a imagem forte do velório do tio Augusto, rodeado toda a noite por seus alunos, numa demonstração de respeito e de dor pela partida do mestre e amigo.
Essa faceta de congregador da família, como também do Partido, foi a grande marca de Manuel Tito de Morais. Nasceu com a República. Honrou-a como poucos. Comemorar seu centenário junto com o da República é um ato de justiça.
Em nossas casas é comum ter fotos da família. Na minha casa da aldeia, além das fotos dos avós, pais e filhos, eu junto uma de Manuel Tito de Morais, sozinho, sentado numa mesa, com aquele olhar de missão a cumprir. Ele é a minha referência, como homem, político e cidadão.
(1) João Manuel Mealha Tito de Morais, grande militante do PS, no qual ocupou vários cargos de responsabilidade;
(2) Maria Carolina, a Titinha, Maria da Conceição, a Xãozinha, Teresa e Luísa, todas filhas como João, único filho do primeiro casamento de Tito, com Maria da Conceição Formosinho Mealha;
(3) Manuel, Luís e Pedro, filhos do segundo casamento de Tito com Maria Emília Adelaide Pedroso da Cunha Rego Monteiro dos Santos;
(4) Lúcia Melo Tito de Morais, a Lucinha, que João conheceu no exílio no Brasil, que o acompanhou em Portugal desde o 25 de Abril e com a qual se casou já nos anos 80.
Amândio Silva
* Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico
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