Carta ao meu velho amigo Manuel Tito de Morais
Meu caro Manuel Tito
Um grupo de admiradores teus, dos muitos que foste deixando pelo caminho, vai promover uma homenagem, não tanto a ti, mas ao que tu representas. Pedem-me um depoimento. Deponho jurando dizer a verdade e só a verdade.
E a verdade é que:
- Te conheço há décadas, sempre igual a ti mesmo. Outros mudaram. Tu não! E essa fidelidade ao que sempre foste, faz de ti um casmurro inamovível. Um monstro de coerência com o que chamas os teus princípios e não passa de ser a tua teimosia.
- Sempre te encontrei empenhado em melhorar o Mundo e o Homem. Despojado de ambições materiais. Ensopado até à saturação em ideais e projectos reformadores. De entre os resistentes que conheci até à amizade, tu foste o mais lídimo representante do pensamento utópico. Continuas a sê-lo, e a vangloriar-te disso. Imune aos utilitarismos e pragmatismos grassantes.
- Como socialista és um chato. Não te resignas às contemporizações do poder, quando é nosso. Se te fizéssemos a vontade, gastávamos num ápice, o nosso capital de votos. No fundo, tens razão: para que servem os votos se não é para os trocar por mais justiça?
- Tivemos a felicidade de, já na segunda metade das nossas vidas, ser chamados a concretizar ideais. Ao fim de meio século de ditadura e opressão, essa incumbência foi, de certo modo, um presente envenenado. Portugal era um campo de minas, pronto a explodir. Acabámos por pôr de pé um Estado de Direito. Por enraizar a Liberdade e a Democracia. Por tornar possível alguma justiça social.
Muitos acham que o resultado é positivo. Tu não! Sempre insatisfeito, achas que democracia, só em algumas vertentes. E que o socialismo é curto. És capaz de ter razão. Duas décadas após Abril, o Portugal que aí vemos, no Mundo que aí temos, não pode encher-nos de orgulho.
As perguntas inquietantes são mais que muitas: que fizemos dos valores estruturantes da consciência moral? Porque é que o trabalho é um bem raro, e privilégio de alguns? Que resignação nos leva a consentir nas discriminações sociais de sempre? Porquê tantos pobres e analfabetos? Porquê tanta insegurança? Porquê, de novo, os apelos à Ordem? Porquê o receio de que o Planeta se canse das nossas predações? Porquê esta sensação de envelhecimento de todas as respostas políticas e sociais?
Admiro-te. És dos poucos responsáveis dispostos a pôr em causa todas as certezas e rotinas. Todos os modelos supostamente triunfantes. Receio que, quando finalmente te for reconhecida razão, seja tarde.
- Se queres que te diga, não tenho a certeza de que as muitas razões por que te admiro – a tua resistência, as tuas prisões, os teus ideais – sejam razões válidas hoje em dia. Metade dos portugueses não viveram já o porquê da tua luta, e não compreendem agora o bem fundado da nossa gratidão por ela.
Querido amigo:
Lá estarei na homenagem que te for prestada. A relembrar os nossos encontros conspirativos. A teimosia da nossa esperança em que a ditadura caísse na semana seguinte. E não menos a esperança de que, chegada a Liberdade, chegaria com ela a libertação de todos.
Não pôde ser assim. Mas foi-o em parte. O que falta, não nos deixa ensarilhar as armas, ou sejam as convicções. A homenagem a ti, será de novo uma batalha.
Um abraço do teu, dedicado amigo
António Almeida Santos
Fonte: Portugal Socialista 214 – Outubro de 1996