São Paulo, 26 de Maio de 2010.
Os Tito de Morais tiveram uma influência decisiva no percurso que marcou a nossa família. Mais de 50 anos de uma amizade que começou em Luanda, passou pelo Brasil, e nunca se perdeu no regresso a Lisboa.
Por Fanny, Ruth e Rui Gelehrter da Costa Lopes
Luanda
Chegamos a Luanda, mais ou menos em 1950: meu marido, Acílio, foi trabalhar na CAOP, assumindo um emprego de topógrafo. Hospedados na pensão, conhecemos o Chico Louro, na ocasião do PC, que nos apresentou o amigo Tito de Morais. Mais tarde, os dois, agora nossos vizinhos, visitavam-nos em casa e eram noites onde ficámos horas conversando sobre o momento político de Portugal. A amizade de vizinhos evoluiu com a chegada da Maria Emília. Compartilhamos, alegrias e dificuldades, por seis anos. A cesárea para o nascimento do Manuel, as ameaças após a prisão de vários amigos nossos: o engenheiro Calazans, a médica Julieta Gandra, Meireles e mais tarde o Tito. Nessa ocasião, sob ameaças veladas – por ser simpatizante do movimento de independência – a Maria Emília retorna a Portugal, agora também com o filho Luís.
Os muitos momentos gratificantes da nossa convivência estão constantemente na memória da nossa família. Fomos testemunhas no registo de casamento dos Titos e eles, padrinhos da minha filha Ruth. Apesar dos muitos percalços que tiveram pela vida afora, sempre levaram a sério este papel. Em TODOS os aniversários da Ruth, sempre apareciam mensagens e fotografias de locais onde se encontravam.
A residência deles era um ponto de encontro de fértil convívio. Os filhos do Tito – Maria Carolina, João, Maria da Conceição, Luísa e Teresa – vinham passar as férias, completando o ambiente. Eram organizadas festas dançantes; numa destas confraternizações a M. Emília teve início às dores do parto do Luís … e a festa continuou.
O Acílio e o Tito tinham grande camaradagem. Numa ocasião, João precisou de um fato de treino e os dois desenharam o molde para posterior execução, regado a grandes gargalhadas. É por essas e outras que um empregado perguntou: “Senhora, afinal, o patrão é engenheiro ou alfaiate?”
Era comum saírem do mercado e passarem por nossa casa, com grande quantidade de peixes frescos. Uma maneira simpática de colaborar connosco, um jovem casal com filhos pequenos.
São Paulo
O desprendimento e a generosidade dos Titos, marcou positivamente a nossa vida. Tito saiu da prisão e veio com a família para o Brasil. Foram eles que incentivaram nossa vinda a São Paulo para que meus três filhos não participassem da guerra colonial. Na ocasião, Igor, meu filho mais velho, escreveu-lhes perguntando se poderia vir para S. Paulo. Responderam que só se trouxesse todos. Tivemos o privilégio de conviver mais alguns meses, antes de irem para Argélia. Compartilhamos a construção dos alicerces da história da nossa família: o emprego do Acílio e a continuidade dos estudos dos filhos.
Lisboa
Após o 25 de Abril, retornei algumas vezes a Portugal, sempre hospedada na casa dos velhos amigos Titos, sentindo o estilo acolhedor com que o anfitrião se dirigia a qualquer pessoa, agora com uma função oficial na política portuguesa. Um episódio ilustrativo: no fim da vida, já muito debilitado – pouco falava e andava – se nega a tomar uma medicação. Me aproximei dele com o remédio e perguntei-lhe: “Tito, aceita o remédio?” Ele, sempre galante, responde: “Da Fanny aceito tudo.”
Terrugem
Lembranças do meu padrinho.
Duas vezes estive com os Titos em Terrugem. O acolhedor espaço tinha as marcas deste político-artesão. Em todos os cantos: piso, móveis, parte elétrica, …
Lembranças dos meus amigos.
Não só a minha mãe era bem recebida na casa dos Titos. Nós, os filhos, com as nossas mulheres, também tivemos ótima acolhida nas viagens a Lisboa.
Não esqueço de dois acontecimentos marcantes. Uma noite conversávamos todos na sala de estar: o Tito estava um pouco triste com seus problemas de trabalho – política. Tito circunspecto e Maria Emília fazendo sala. Resolvi perguntar de onde vinham as muitas medalhas que estavam num móvel. Eram medalhas de todo o mundo homenageando o Tito. Muitas. Sem cerimônia resolvi colocá-las em mim. Ao invés de ficar contrariado, Tito mudou de humor e participou também da animação que tomou conta daquele nosso encontro.
Assembleia da República
Na outra ocasião Maria Emília nos levou ao Palácio do Governo. Tinham orgulho da cidade de Lisboa. Bons anfitriões. Num momento de distração do mestre-de-cerimónias que nos acompanhava pude ter o gostinho “histórico” de sentar na cadeira destinada ao presidente. Este ato não teve a aprovação dos nossos cicerones. Saudades.
Por Rui Gelehrter da Costa Lopes
Escrito ao abrigo do acordo ortográfico
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