Ora venha de lá esse abraço
Eu era um rapazola, reguila, metediço, perguntador. Andava pelo meu quarto ano do Camões, com o reitor Sérvulo Correia a impor um regime espartano no liceu. E começava a questionar-me sobre o porquê da “Mocidade Portuguesa”, a Bufa, como lhe chamávamos – sem saber, aliás, muito bem porquê. No fundo era talvez por aversão às fardas, quem sabe? De política, nicles, que nessas coisas o meu pai não se metia, embora não fosse declaradamente adepto do salazarento regime. Mas tinha uns amigos que não sei se vos diga se vos conte.
Foi por tal altura que, um dia, num jantar em minha casa, um deles, um homem bom e bem-disposto, chamado Máximo Couto, levou como convidado um compincha chamado Francisco Ramos da Costa. Eram uns repastos largos, com conversas prolongadas e umas anedotas mais ou menos críticas à mistura, nada de especial, mas enfim...
Estava também presente um advogado, o Dr. Abranches Ferrão, igualmente participante em tais ágapes. A dada altura, eu que me ia deixando ficar, como habitualmente, para coscuvilhar as conversas dos graúdos, ouvi falar num tal Eng. Manuel Tito de Morais, homem de uma só cara, se bem me recordo da frase de Ramos da Costa – e que no dizer característico deste último, “bem se lixava com isso!”
A hora de ir para a cama aproximava-se inexoravelmente, e o puto malandrote que hoje escreve estas mal-alinhavadas linhas, foi-se percebendo que se falava de um almirante que era qualquer coisa ao tal engenheiro. Mas pouco mais entendi, porque a ordem de recolher ao meu quarto – privilegiado, eu tinha um só para mim – cortou a curiosidade de saber mais.
Tê-los no sítio
Uns poucos anos depois, fui muito influenciado pelo velho Júlio Vilar, emérito tocador de guitarra e contador de histórias, meu vizinho no Restelo, avô do João, do Zé e do Toninho grandalhão e republicanérrimo dos quatro costados – ou dos cinco, ou dos seis, ou dos muitos – creio que fundador do Ginásio Clube Português e de quem se dizia que era do Partido Comunista.
Dele ouvi coisas excelentes sobre o dito engenheiro Tito de Morais, “tinha-os no sítio”, de acordo com o narrador entusiasta, que conhecera o General Norton de Matos, o Quintão Meireles, o Cunha Leal e o professor João Soares, de quem dizia maravilhas, “um homem teso e intemerato”. Vinha ao de cima o anticlericalismo evidente do meu “instrutor” de política.
Andei, à revelia do meu progenitor, na maravilhosa aventura que foi a campanha do general Humberto Delgado, depois de ter começado na do Dr. Arlindo Vicente. Depois, aconteceram muitas coisas. Morreu-me o patriarca, levei as primeiras bordoadas policiais, tive uns interrogatórios, coisa de nada, com umas bofetadas à mistura e umas nódoas negras que a amica curava.
E sempre ouvindo falar do Manuel Tito de Morais, e sempre desejando conhecê-lo. Mas fora para Angola. Onde um dia, eu próprio fui para, a bordo do Uíge, um oficial miliciano, sem ânimo para desertor, muito menos vocação para “herói” – e contra a guerra colonial. Mas quando lá cheguei, já o senhor engenheiro de lá fora expulso, ou quejando.
Só depois do 25 de Abril – ainda se lembram?, foi já em 1974, mas tende a cair ignobilmente no esquecimento, uma porra, no fundo o fascismo até era brandote, a PIDE até tinha bons rapazes, excelentes chefes de família, os do reviralho é que diziam que não, este País não quer ter memória ou, se calhar, nem a sabe ter – é que tive o privilégio, a alegria e a honra de conhecer o meu Manuel Tito de Morais, o tal, ali na D. Pedro V, à esquerda de quem vai do Rato para as Amoreira. Foi o Jorge Morais quem mo apresentou.
Gostei logo dele, do sorriso por baixo do bigode, do seu ar decidido, e ao mesmo tempo, da sua energia a rodos. Homem de uma cana, caraças!
O nosso Portugal Socialista
Éramos, então, todos, uns idealistas, do tempo do “Partido Socialista, Partido Marxista”, do punho esquerdo erguido, da Alameda, dos Pavilhão dos Desportos, da marcha até Belém – mas sobretudo, do Portugal Socialista em que me meti de alma e coração, até aos cabelos, com o Zé Leitão, o Avelino Gonçalves, o Mário Cardia que por lá passava por ser director, da Teresa Sena, do já citado Jorge Morais, do António Neves, da minha querida Judite Barroso, da Teresa Oom.
Nunca percebi como – acabado de chegar de Luanda, revendo amigos queridos de um antigamente tão próximo (eu tinha só 33 anos, c’os diabos) como o Catanho de Meneses, o Jorge Campinos, o Xis Calheiros, o Chico Zenha, a Fernanda e o António Lopes Cardoso, o Igrejas Caeiro, a Ivone Carmona, eu sei lá quem mais – aquela malta porreira me escolheu para chefe da redacção do Portugal Socialista. Fundado pelo agora bem meu Tito de Morais, em Roma, com o Arrigo Seco como director oficioso, mas filho directo, dilecto, absoluto desse enorme lutador pela Liberdade que era, é e será sempre o Manel.
Passaram alguns anos. O Portugal Socialista voltara às mãos do Manuel Tito – e dessa mulher de fibra, de antes quebra que torcer, companheira de lutas e de amor, ferrabrás de saias e coração de Mãe – não é assim ó Lena Pina? diz lá que não se és capaz! E sei bem que não és. Não é assim ó Siríaco Geraldes, que continuas vivíssimo da costa nos nossos corações. Amigo querido, carago, e onde quer que estejas o testarás sem necessidade de papel selado ou reconhecimento notarial...
E eu, que enviara, às escondidas, de Luanda, uns textozecos mais ou menos publicáveis, em cartas com mata-borrões da E. Merck a disfarçar, para o nosso clandestino Portugal Socialista, tive o orgulho, a honra, o prazer, a alegria, a felicidade de ir trabalhar, aprender, colabora, de me dar ao jornal depois revista, tendo como director e pai o Tito de Morais. Estou a ver também o nosso Mário Soares a enviar os seus textos para publicação – e o Manel a pedir-me para decifrar uma palavra mais solta, mais corrida, mais combatente, mais contundente.
Hoje aqui estamos, todos, dando testemunho da amizade e do respeito que nos une ao Manuel Tito de Morais. Que está aí para as curvas, sobretudo para as femininas, desculpa lá ó Maria Emília, mas nem na Terrugem ele sossega, nunca sossegará, olhará sempre para uma mulher bonita, mesmo quando tiver dois milhões de anos – o que para o Tito não é nada, nadinha.
Ora venha de lá esse abraço, seu Manuel Tito de Morais. Sentido, apertado, filial, fraterno, camarada, amigo. Deste que s’assina, pouco atento, nada venerador – mas muito obrigado!
Antunes Ferreira
Fonte: Portugal Socialista 214 – Outubro de 1996