Refugiado célebre
A revista Refugiado (Refugee), do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), tinha, nos finais dos anos 80, uma rubrica dedicada aos “Refugiados Célebres”. Nomes como Einstein, Willy Brandt, Marlene Dietrich, Nureyev, entre outros, figuravam como refugiados que se destacaram e se tornaram símbolos reconhecidos mundialmente pelas suas intervenções nas áreas da ciência, tecnologia, cultura, política e defesa dos direitos humanos.
Tive ocasião de colaborar, activamente, no único número da revista que saiu, em português, e de convidar Mário Soares, na altura Presidente da República, para figurar como exemplo de um refugiado célebre português que sofreu a prisão, a deportação e o exílio e que veio a representar o Portugal democrático ao mais alto nível.
Quando agora quis escrever sobre o meu Pai, esta ideia veio-me à memória, porque não só continuo muito envolvida no trabalho com os refugiados e na esfera dos direitos humanos, mas também porque ele foi, de facto, um Refugiado Célebre.
Também ele foi privado de liberdade, passou o pesadelo da prisão em Portugal e em Angola, esteve exilado e impedido de entrar em países como a França, viveu com dificuldades de vária ordem, mas sempre com uma inabalável convicção que voltaria ao seu país e ajudaria a construir um Portugal melhor, mais justo e solidário em que os valores que o inspiraram da revolução francesa - Liberdade, Igualdade e Fraternidade - fossem atingidos.
E assim foi. A sua vida dedicada à política com uma perspectiva universal, o seu sentido de ética e justiça foram um exemplo para todos nós, e são respeitados ainda hoje pelos seus amigos e por muitos adversários políticos.
Fui privada do seu convívio durante muito tempo. Quando esteve em Angola, no Brasil e na Argélia era muito difícil vermo-nos. Lembro-me que tentei ir visitá-lo, e às minhas irmãs Luísa e Titinha, a Argel e fui interceptada pela PIDE em Vilar Formoso e obrigada a regressar a Portugal com o passaporte apreendido.
Já quando viveu em Roma foi diferente. Estávamos mais vezes juntos. Eu e o Jaime levávamos os nossos filhos, Carlos Miguel e Rita, muito pequenos, a visitar o Avô e a passear por Roma. Recordo como era bom sairmos à sexta-feira de Lausanne, conduzirmos durante toda a noite e chegarmos de madrugada para passar o fim-de-semana. O Pai estava à nossa espera com um grande sorriso de alívio pela viagem ter corrido bem. Em Roma, o meu irmão Manuel servia-nos de “cicerone”, e com o Luís e o Pedro percorríamos, às vezes cansados até à exaustão, locais magníficos, plenos de história e de arte, como o Coliseu, o Fórum romano, o Pantheon, as Catacumbas, a “Fontana de Trevi”, a Piazza Navona, etc. etc.
Mas o nosso “reencontro” foi depois do 25 de Abril. A reunificação familiar, que a maior parte dos refugiados de ontem e de hoje tanto anseiam, foi só possível, para nós, depois do 25 de Abril e em Portugal. A partir daí a família passou a ser também uma “prioridade” para o meu Pai.
As reuniões em família multiplicaram-se. Os jantares, ao domingo, com os filhos, genros e netos em sua casa tiveram um significado muito particular. Mais tarde, a sua casa em Terrugem foi uma porta aberta para os amigos e para a família, o que nos dava um grande conforto. Sabia que podia contar com ele sempre, que me ajudaria quando fosse necessário, que se interessava pelo meu trabalho. Embora a diversidade de opiniões imperasse muitas vezes na nossa família, o seu passado de Refugiado Célebre e o seu presente de artífice do Portugal democrático conferia-lhe um grande respeito quando falava.