Personalidades anti-fascistas, movimentos democráticos e o Partido Comunista Português decidiram criar, numa Convenção realizada em Roma em 1963, a Frente Patriótica de Libertação Nacional (FPLN). Por proposta de Tito de Morais a sede da FPLN seria na Argélia, país recentemente independente e solidário com os movimentos de libertação – nomeadamente das colónias portuguesas – e a luta dos povos oprimidos. Pedro Ramos de Almeida foi, entre 1964 e 1969, o representante do PCP na FPLN. Seguiu, pois, para Argel com a sua família: eu e o nosso filho Nuno, de nove meses de idade.
Sem viver com o meu Pai desde os nove anos – embora passasse algumas férias com ele -, a possibilidade de podermos conviver, dele conhecer o meu filho e de estarmos na mesma luta encheu-me de alegria. Posso dizer, com verdade, que foi em Argel que o conheci melhor.
E gostei muito daquele Pai que me aparecia aos 22 anos de idade. Todo ele era ternura e solidariedade, mas ao mesmo tempo um líder, um combatente sem tréguas pela liberdade.
As nossas casas ficavam relativamente longe, mas todas as semanas íamos jantar a casa dele e aprofundar laços com os meus jovens irmãos Manuel e Luís e mais tarde com o Pedro, que nasceu em Argel.
O Pedro tem menos um ano do que o meu filho, seu sobrinho, e cheio de pressa nasceu algumas semanas antes do tempo. O meu Pai apareceu aflito em minha casa a dizer-me que a Maria Emília tinha ido para a maternidade. Numa correria, fomos os dois comprar o “enxoval” do bebé e levá-lo à maternidade. Fui eu que o vesti, lhe dei o nome e fiquei sendo sua madrinha.
Todos os dias estávamos juntos pois ele era dirigente da FPLN e eu trabalhava na sede. Eu era também locutora da “Voz da Liberdade”, a rádio da FPLN, e o meu Pai esteve na origem da sua fundação e foi o primeiro responsável por ela.
A rádio emitia duas vezes por semana, às quartas e sábados, e mais tarde também às segundas, e o meu Pai era um dos redactores. Lembro-me ainda de alguns dos seus textos – bem escritos, com uma linguagem simples e precisa.
A importância da rádio na luta anti-fascista deve ser sublinhada. Muito ouvida em Portugal, a par da Rádio Portugal Livre, dava uma informação livre de censura e mobilizava os democratas portugueses contra a ditadura e a guerra colonial. Tinha uma rubrica muito concorrida: o Correio da Voz da Liberdade. Dezenas de pessoas do interior e do exterior enviavam semanalmente cartas para o “13 rue Auber” e era normalmente Piteira Santos quem respondia. Fazia-o calorosamente e com um enorme prazer. Havia ainda outras publicações da imprensa escrita largamente difundidas. O trabalho da FPLN também foi essencial. Desde o MUD que não existia uma organização unitária tão forte, embora esta tivesse a sua actividade principal no exterior. Os membros da Junta Revolucionária Portuguesa (o órgão directivo da FPLN) deslocavam-se a vários países europeus e mesmo americanos, onde criavam núcleos de democratas aderentes, e chegaram a vir clandestinamente a Portugal. Participaram e/ou organizaram conferências internacionais sobre a situação em Portugal e aprofundaram laços com os movimentos de libertação nacional das colónias que também tinham escritórios em Argel e com os seus principais líderes.
As autoridades argelinas relacionavam-se com a FPLN considerando que esta representava o povo português e convidavam os seus dirigentes para assistir a comemorações e recepções. As representações diplomáticas acreditadas, nomeadamente as dos países socialistas, tomavam posição idêntica. Numa ocasião, em 1965, a Embaixada de Cuba convidou os responsáveis da Junta Revolucionária para uma recepção destinada a assinalar um momento muito especial: a presença de Che Guevara em Argel, que vinha participar numa conferência.
Argel foi um chão amigo para os exilados e para os desertores e refractários da guerra colonial.
Quando, em 1963, o meu Pai se instalou em Argel, mobilou a sua casa com “móveis” feitos por ele. Com a madeira dos caixotes dos seus livros, que trouxera do Brasil, construiu uma mesa e vários bancos. As camas, inicialmente, resumiam-se a colchões no chão. Era um óptimo “bricoleur” e as suas habilidades estendiam-se à cozinha e ao “corte e costura”.
Mais tarde, com o trabalho do casal – o meu Pai era engenheiro electrotécnico nos Hospitais de Argel - foi comprando outra mobília e a sua casa tinha sempre as portas abertas para todos os portugueses refugiados.
Todas as festas, como o Natal ou a passagem do Ano, eram feitas em sua casa. Sabia receber como ninguém e com ele o exílio ficava menos triste.
As nossas longas conversas, que muitas vezes duravam horas, só se repetiriam depois do 25 de Abril, quando finalmente tivemos o direito de viver em Portugal. Voltei a ter Pai aos 32 anos.
Tenho de confessar que em 75 “brigámos” bastante pelos nossos pontos de vista, nem sempre convergentes, mas isso nunca obstaculizou a nossa infinita amizade.
A separação derradeira foi em 1999, com a sua morte. Mas o seu exemplo de Homem íntegro e carinhoso, democrata e combatente pela liberdade contínua ao meu lado.
Imagem: Manuel Tito de Morais com o neto Nuno Ramos de Almeida ao colo e, ao colo de Maria Emília, o seu filho Pedro Tito de Morais
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