Um patriota de excepcional coragem
Conheci Tito de Morais num daqueles intensíssimos e indescritíveis dias que se seguiram ao 25 de Abril, em que todos os problemas do país caíam em catadupas sobre a Comissão Coordenadora do Programa com pedido de resolução. A azáfama não impediu, porém que tivéssemos tido, logo ali, uma longa e aberta conversa sobre o futuro político do país. Talvez a abertura e franqueza desta sua primeira conversa tivesse sido estimulada por lhe referir ter sido professor da Escola Naval e recordar o retrato de seu pai numa sala onde estavam representados os antigos Comandantes, de conhecer alguns aspectos da sua ilustre carreira na política e na Armada e, em particular, a sua participação no 5 de Outubro.
Sensibilizado, falou-me com enorme entusiasmo de valores republicanos e logo aí pude observar a funda convicção com que os cultivava e a apologia que logo deles fez para o Portugal recém-saído da ditadura. Sabia ser uma das principais personalidades responsáveis pela organização e estímulo da heroica luta antifascista que durante tantos anos e com tantos sacrifícios fora travada contra o regime deposto, e por isso, perante a sua generosidade e abertura, logo o quis ouvir sobre as formas de garantir a construção de um regime democrático e de progresso para Portugal, o que constituía a principal preocupação do grupo de militares com que me relacionei na preparação política do 25 de Abril.
Foi aí, durante a conversa mantida sobre este tema, que verdadeiramente conheci e passei a admirar Tito de Morais. Na alegria transbordante com que participava na construção do Portugal livre revelava-se o homem de profundas convicções, o democrata intransigente, o militante de esquerda, para quem o socialismo é um desígnio a construir em liberdade e inteiro respeito pela pessoa humana. O homem para quem o progresso não é apenas material, mas deve também reflectir-se, na justiça, na verdade, na melhoria dos comportamentos sociais, em tudo o que possa contribuir para o aperfeiçoamento, a elevação e a dignificação do homem.
Recordo ainda vivamente, a sensibilidade que revelou aos episódios ocorridos com o programa do MFA na Pontinha, de que já tinha conhecimento, e aos nossos receios de que os militares pretendessem manter-se na política, particularmente através da Junta de Salvação Nacional; a satisfação que sentiu quando lhe chamámos a atenção para o facto do programa referir, por nossa vontade expressa, a constituição de um governo civil, que gostaríamos de ver rapidamente implantado e com poder; o clima de entendimento que logo se estabeleceu ao saber que aquele sector do movimento entendia intransigentemente que a política deve ser praticada por políticos e partidos e não por militares e a grande importância que, por isso, dávamos ao estrito cumprimento do Programa do MFA para se obterem, no tempo marcado, órgãos e políticas com legitimidade democrática.
Ficou-me gravada para sempre a reflexão que fez, com grande realismo, sobre as diferenças de organização, implantação e métodos entre os dois partidos então existentes, a análise dos riscos que então se perfilavam, acabando por afirmar a sua profunda convicção na pujança dos ideais defendidos pelo Partido Socialista, a sua inabalável certeza na capacidade de atrair militantes, de organizar o PS como grande força política nacional, capaz de obter o apoio democrático que permitisse ir construindo a sociedade de liberdade e progresso que há tantos anos ardentemente desejávamos.
Estabeleci desde então laços de confiança e respeito por Tito de Morais que mais se aprofundaram durante os tempos difíceis que o país viveu durante o verão de 1975, onde juntos integrámos o VI Governo Provisório e onde separadamente, mas com contactos e no mesmo sentido, lutámos pela vitória da democracia e da liberdade.
Por todo esse passado de estima e admiração, é com grande emoção que me associo à homenagem a Tito de Morais por ocasião do seu centenário.
Num momento tão delicado para a vida nacional deve lembrar-se ao país que também em épocas bem difíceis da história nacional, houve um patriota que, com a sua excepcional coragem pessoal e sentido de dever cívico, empenhou toda a sua vida na causa da liberdade e do progresso do seu país e do seu povo.
É bom evocar o seu contributo para a construção e consolidação da democracia do Portugal renovado pelo 25 de Abril, na qualidade de membro fundador e grande militante do Partido Socialista, de político extremamente empenhado na construção de uma sociedade de direitos, justiça e progresso e na rectidão da sua acção como Vice-presidente e Presidente da Assembleia da República.
É salutarmente didáctico, neste tempo de anemia de valores, lembrar ao país a exemplaridade da sua estatura cívica, a verticalidade do seu carácter, o sentido ético que orientou toda a sua vida, prestar homenagem ao cidadão Tito de Morais.
Vítor Crespo
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